Por Tav Rosh Benyakóv
Discorrer sobre Jesus pode ser demasiado delicado, complexo e contraditório. Pois não é possível determinar que ele tenha sido um ser real, encarnado, com vida social que possa ser reconstituída de forma precisa e histórica. Por outro lado, tudo o que dizem sobre ele, bem como tudo o que tem sido produzido e pregado sob argumento de sua possível existência, influenciou radicalmente a sociedade por dois mil anos. Sendo assim, o Jesus histórico só pode ser estudado e avaliado por meio dos acontecimentos que evocam seu nome e seus valores, capazes de gerar concretas reações no cenário social. Ou seja, entendo que o Jesus histórico é produto do imaginário coletivo - plural e controvertido – ora construído, materializado e manipulado no decorrer da história.
Mas que Jesus histórico será discutido: O da expectativa messiânica judaica, oriunda do cativeiro babilônico? O essênio? O Mestre da Justiça? O rei? O sacerdote? O eremita ascético? O rabino fariseu? O herege, profano e reacionário que foi condenado à morte por justiça? O que se casou com Maria? O que teve relações sexuais com João? Aquele narrado no cânon cristão ou nos apócrifos? O helenístico? O gnóstico? Ou aquele deificado e forjado para ser dominador romano? Mas romano ortodoxo ou católico? O mesmo Jesus que legitimou a inquisição universal e o pogrom russo? Ou o Jesus também anti-semita, reformado, e luterano, que serviu de base ao protestantismo alemão e nazista? Ou o Jesus que motivou o selvagem capitalismo europeu e americano? Mas deixaria de ser histórico o Jesus mítico, e místico, produzido pela coerção social das tradições imperialistas cristãs? E o Jesus cardecista e esotérico? E o Jesus arquetípico de Jung? Ou o Jesus da experiência pessoal, ora produto da esquizofrenia e demais patologias psíquicas, tal como a fraude do inconsciente? Ou o Jesus mercenário, manipulador, curandeiro, charlatanista, que vende a salvação nos movimentos neopentecostais contemporâneos? Ou, quem sabe, o Jesus imaginativo, lendário, fabuloso e literário que inspira adesões político-partidárias ainda hoje? Sob que perspectiva é possível avaliar este personagem-curinga, que respalda o bem e o mal, a ordem e a revolução, a paz e a guerra, a dominação e a liberdade, a fé e a razão, variando de acordo com a época, grupo social e interesse político de quem o defende? Quem é este ídolo plástico, sempre remodelado pelas mãos dos artífices-ideológicos que trabalham para a crescente legitimação e manutenção do poder? Quem é este ídolo de barro que é vivificado, adorado e imortalizado pela alienante crendice das massas?
Ao focar a atenção somente no período contextual do segundo Templo de Jerusalém, por volta de 515 a.e.c até 70 e.c, percebe-se que a fé judaica estava dividida em diversos segmentos: samaritanos, saduceus, escribas, fariseus, essênios, zelotas, macabeus, herodianos, sicários, caraítas... e, por fim, cristãos. Nota-se, a partir desta introdução, que o judaísmo nunca foi uma religião homogênea, detentora de um só dogma. Ao contrário, sempre foi plural e, às vezes, os judeus discordavam quase plenamente em suas crenças à medida que seguiam de uma facção à outra. Em função disto, segundo o historiador Flávio Josefo, em meados de 150 a.e.c, um grupo de ascéticos separatistas, denominado essênio, migrou ao deserto por encontrar-se insatisfeito com a religiosidade, política e helenismo predominantes em Israel. Os essênios dividiam-se em grupos de 12, vestiam-se de branco, usavam barbas, eram celibatários, acreditavam em cura pela imposição de mãos, aboliam a propriedade privada, eram vegetarianos, realizavam batismos, praticavam o ritual da ceia com vinho e pão, expulsavam demônios, acreditavam no Bem e no Mal, em filhos da Luz e das Trevas, não aceitavam sacrifícios de animais, desprezavam o Templo, acreditavam na vinda de um messias libertador, valorizavam as escrituras sagradas e dedicavam-se a estudá-las – sendo estas também as principais características de Jesus e seus discípulos, conforme narrativa dos Evangelhos. Assim, possivelmente, os essênios teriam lançado as principais bases teológicas do cristianismo primitivo – e ainda judaico. E mais que isto, pois, talvez, tendo sido o Mestre da Justiça um tipo de messias judeu - dentre tantos outros que já existiram - fora progressivamente mitificado pelos primeiros gnósticos-cristãos ao ponto de, séculos mais tarde, também ser usurpado e deificado pelo Império Romano.
Independente de quem, exatamente, tenha sido o Jesus histórico, é notório que ele foi filho do judaísmo e representava exclusivamente as expectativas sociais, políticas, religiosas e messiânicas de determinados segmentos israelitas. Inclusive os Evangelhos (escritos entre 70 e 90 da e.c) testemunham que os pais de Jesus e seus discípulos eram judeus, da linhagem de David; ele freqüentava as sinagogas, o Templo, e colocava-se a reinterpretar livremente a Torá e as Escrituras, tal como um rabino fariseu; seus ouvintes eram basicamente israelitas; e mesmo Paulo, que foi o maior propagador de Jesus, era fariseu convicto, criado aos pés de Gamaliel, detendo profundo conhecimento da Lei judaica; e, segundo os Atos dos Apóstolos - apesar do proselitismo e da contínua conversão de gentios ao judaísmo - o tema do possível messianismo de Jesus era sempre discutido entre judeus e dentro das sinagogas. Mas o conceito judeu de messias era simplesmente o de "libertador e restaurador político”. Jesus nunca foi considerado "deus-encarnado" na religião judaica, nem parte de uma trindade divina – isto era considerado blasfêmia, heresia, profanação e idolatria, sendo absurdamente incompatível com a cultura deles. Consequentemente, a grande maioria de judeus repudiou completamente a Teologia Paulina, causando uma cisão definitiva entre judeus e cristãos. E o Império Romano perseguia tanto a um quanto ao outro, torturando-os, queimando-os, e matando-os durante os quatro primeiros séculos. Somente em 313 da e.c. que Constantino se converteu ao cristianismo primitivo e concedeu liberdade de culto a Roma, mandando construir a primeira igreja com seu próprio dinheiro. Em 325 e.c., no Concílio de Nicéia, Constantino tentou unificar o pensamento cristão e eleger alguns dogmas - tal como a doutrina ariana, que defendia a divinização de Jesus. Em 330 e.c. a capital do império foi transferida para Constantinopla; e apenas em 380 da e.c.,Teodósio tornou o cristianismo uma religião estatal. A partir deste momento concretiza-se a maior usurpação religiosa da história: o carpinteiro judeu é transformado num deus romano, a Tanach é substituída pelo Novo Testamento, as sinagogas cedem lugar às igrejas, as raízes judaicas são extirpadas e recebem uma maquiagem helenizada, o povo judeu é desapropriado de suas riquezas e amplamente exterminado sob o trágico argumento de terem “assassinado o Filho de Deus” - e o judaísmo é transformado em cristianismo, dando início à tenebrosa Idade das Trevas.
Sob esta brevíssima e superficial perspectiva, já é possível perceber que o Jesus pregado pela igreja – seja ela Ortodoxa, Católica, Protestante ou Neoprotestante - tornou-se mais que uma mitificação progressiva e naturalmente mutante, mas uma fraude histórica a serviço do poder. Trata-se de um Jesus roubado, deturpado, forjado, recriado, folheado a ouro – desde a Patrística, Escolástica, Reforma – para ser forçosamente comprado por parcelas incultas da população. Todavia, esta conclusão não encerra a discussão sobre Jesus e aponta para infinitas outras problematizações históricas, culturais, religiosas, sociais, políticas, psicológicas e ontológicas - algumas das quais sugeridas no segundo parágrafo deste artigo - que necessitam de maior atenção, pesquisa e aprofundamento filosófico.
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